Mês: novembro 2011

A primeira cruzada

Erro grosseiro na capa roubou o gostinho da vitória

Após uma segunda edição bastante protocolar, cuja matéria de maior interesse estava no pé da página 7 (a primeira pesquisa eleitoral do jornal, realizada no bairro Araçá, tema que ainda daria muita dor de cabeça), em agosto de 1996 sairia, na edição de número 3, a primeira grande reportagem do Pirão d´água. Sua primeira cruzada, digamos assim.

A pauta estava bem ali na nossa frente, na baía de Porto Belo. Mas não lembro como chegou à nossa redação. O fato é que os barcos que faziam a pesca de atum viviam cercando isca viva nas proximidades da ilha João da Cunha, algo que contrariava a legislação ambiental. Os pescadores artesanais estavam furiosos, mas impotentes.

Resolvemos averiguar e, como se diz pomposamente por aí, “num esforço de reportagem” levantamos informações. Fomos ao Araçá tentar conseguir uma boa imagem dos atuneiros em ação. Lá, encontramos Teté, candidato a prefeito, que resolveu fazer uma média e ligar para o Ibama, denunciando o caso. Ninguém atendeu a sua chamada.

Mas conseguimos algumas imagens. Sem uma lente com zoom suficientemente amplo, as fotos não saíram lá aquelas coisas, e ficaram piores ainda na impressão do jornal (olhando agora, parecem essas fotos que se vê de supostos ovnis).

Ouvimos pescadores, políticos locais, entrevistamos o presidente da Colônia de Pescadores (que ingenuamente considerei uma espécie de Chico Mendes portobelense), obtivemos alguns números. “Nos últimos anos em Porto Belo nós temos assistido em silêncio à perpetuação de uma verdadeira afronta”, esbravejamos no editorial. Uma verdadeira bomba.

Faltou praticar melhor o jornalismo e ouvir o outro lado. Sequer suspeitávamos que muitos pais de família da região trabalhavam nos convés daqueles navios, ou que houvesse outros aspectos a considerar.

Foi também a primeira vez que passamos uma noite inteira trabalhando no jornal. Suamos para deixar tudo pronto, revisado, impecável. Às 7 da manhã do dia seguinte, seguíamos para casa como um bando de zumbis, esfalfados (acho que o Candôco ainda teria que levar o jornal até a gráfica que o rodaria, em Florianópolis).

Porém, nos sentíamos realizados. Estávamos cumprindo com nosso papel, abraçando uma causa importante, praticando jornalismo de verdade. Éramos os paladinos da justiça da vez. Só que, assim que chegaram os fardos de jornal, na primeira olhada, o Candôco deitou o olho sobre um erro grotesco no título da legenda, algo que, embora tívessemos visto e revisto à exaustão, acabou passando batido. Apenas isso bastou liquidar nosso sentimento de vitória…

Piô

O Cesar se tornou uma espécie de mito lá no ginásio da Escola Básica “Tiradentes”, numa vez em que a temida professora Vilma o mandou ler a redação que ele deveria ter feito como lição de casa. César não havia escrito absolutamente nada. Porém, se levantou resoluto, pegou o caderno e se pôs a ler uma história fantástica que inventou na hora. Surpresa com a inventividade do moleque, dona Vilma quis ver a redação com os próprios olhos. Qual não foi sua admiração quando constatou que não havia nada ali no caderno, a folha estava em branco? Ela mesma tratou de contar o fato na sala dos professores, e a história correu o colégio.

Cesar era um cara loiro, olhos azuis, muito claro, uma falha no lábio superior devido a um acidente na infância, cabelo no estilo “mullet”. Costumava usar um colete e um bracelete do tipo “metaleiro” – sem o ser – e tinha por apelido “Piô”. Acho que foi o primeiro escritor de realismo fantástico que conheci. Escrevia histórias malucas cujo personagem principal era sempre o Bilu, seu cachorro vira-latas, cujos prodígios – inventados por ele – incluíam derrubar um poste com um golpe de calda.

Piô tinha um senso de humor invencível e era absolutamente debochado. Podia gastar horas atazanando algum colega, como na vez em que chateou o Bruno na saída do colégio, enquanto este, roxo de raiva, o repreendia com o prosaico xingamento: “Mentecapto!”

Bem mais tarde, Piô assumiu a condição de Lázaro. Estávamos na escola, quando o Lipe, o professor de física e outras ciências, contou que o Cesar havia morrido. Comoção e confusão entre os amigos. Descobrimos que ele sofria de diabetes, sem o saber, e teve uma crise decorrente disso. Diagnosticado no hospital que o atendeu como estando embriagado, recebeu uma injeção de glicose, o que precipitou o coma.

Cesar não morreu, mas nunca mais foi o mesmo. Ao mesmo tempo em que descobriu que teria que conviver com uma doença que lhe impunha limites, descobriu que ia ser pai. E os filhos foram se sucedendo. Cesar se tornou amargo, fatalista, tropeçou entre idas e vindas de Curitiba, onde nasceu, em busca de um norte. Bebia, algo que, para um diabético, era absolutamente pouco recomendável.

A última vez que o vi foi quando o Arão, que se tornou muito próximo a ele durante seu longo calvário, me convidou para o levarmos até Balneário, para uma sessão de hemodiálise. Ele mal enxergava, estava amarelo, o rosto inchado. Não suportava mais a diálise, e me parece que estava com medo.

Cesar morreu um tempo depois disso. Quatro ou cinco amigos estiveram no velório, num centro comunitário do bairro Jardim Dourado. Muita gente talvez tivesse acreditado que ele já houvesse morrido mesmo naquela primeira vez, ou nas outras em que o deram por finado. Não tenho ideia de como ele, se pusesse a si mesmo como personagem de suas redações, escreveria sua própria história, se com o colorido aventuresco dos primeiros tempos ou o cinza carregado de amargura dos últimos dias. Gosto de pensar que seria algo um pouco mais divertido…

Romaria do Além

Ah sim, falávamos da Procissão das almas e dos textos que estão na gaveta, à espera de uma improvável segunda edição do Contam os Antigos. O texto abaixo escrevi como introdução a um capítulo que trata dessa curiosa crença que, aliás, não é exclusividade nossa, trata-se de uma herança que nos chegou de além-mar. Bem, importa que fiz na ocasião uma incursão até o cemitério de Bombinhas na hora propícia (à meia-noite), num esforço de jornalismo “gonzo” para descobrir alguma igualmente improvável manifestação do Além. Começa assim…

“Não é todo mundo que vê a procissão das almas”

Passa um minuto da meia-noite. Na Governador Celso Ramos, a última Praiana do dia reduz a marcha antes de vencer as duas lombadas na curva final da avenida, rumo a Canto Grande. Dentro desse ônibus, amarelo com listras em degradê vermelho, talvez durma algum estudante universitário cansado, voltando de Itajaí ou de Balneário Camboriú. No mais, exceto pelo motorista e pelo cobrador, é provável que esteja vazio.

Choveu durante o dia inteiro. Agora, caem apenas umas gotas retardatárias. O céu está limpo e claro, dá para distinguir nuvens rosadas na direção do Oeste. Amanhece. No asfalto molhado da SC-412, passam alguns carros, separados por intervalos de minutos. Alguém caminha solitário na altura da “Volta do Almeida”. Na subida do morro, corre uma névoa rasteira, branca em contraste com o fundo iluminado de uma placa publicitária.

Bombas está quieta neste início de madrugada. O mar, ao contrário, mostra-se agitado. Linhas brancas de espuma saem do escuro e, uma após a outra, as ondas despencam na areia. Embora quieto, o bairro não está exatamente dormindo. Alguns estabelecimentos ainda funcionam. O “Restaurante do Olímpio”, por exemplo, recebe algumas pessoas.

Noutra esquina, um grupo conversa. Um carro pára rapidamente, pergunta algo a eles, depois segue vacilante. Um ciclista surge na avenida, as lanternas dos pedais refletindo os faróis que passam. Um pouco mais na frente, um sujeito de boné caminha quase no meio da pista, olha para trás e então decide seguir pela calçada. Há mais gente, sentada nas escadarias da fachada de um edifício no final da Leopoldo Zarling. Dessa altura, já dá para ver a torre da capela, iluminada num brilho amarelado, como o produzido por lâmpadas comuns.

Ao final da “Curva do Piolho”, no início da descida que conduz ao Centro, uma obra no calçamento dividiu a pista no meio, uma parte está interditada e ficou difícil passar. Mais adiante, a mesma obra transformou meia pista numa vala lamacenta.

Bombinhas está igualmente quieta, embora seja o início de um feriadão. Ali na frente, empregados recolhem as cadeiras de um restaurante e uma moça aguarda sentada no ponto de ônibus. O vigia do empreendimento hoteleiro mais vistoso do centro, a Vila do Farol, conversa com uma mulher. Quando amanhecer, será 2 de novembro, quinta-feira, dia de Finados. Por enquanto, é a Noite de Todos os Santos.

Meia volta e lá está, vista pelo lado de Bombinhas, a capela da Imaculada. A subida que conduz até ela se perde num breu absoluto. Lá em cima, porém, o cemitério surge iluminado. De perto, a igreja se apresenta muito branca. Um potente holofote despeja sua luz sobre a estrutura. Tudo está calmo, só se ouve a cantoria solitária de um grilo e o chiado do vento, que sopra muito forte e remexe as folhas das palmeiras e dos arbustos. Embaixo, cintilam as luzes da cidade.

Nessa calmaria, o coração experimenta uma ansiedade, receio de que a coragem seja posta à prova a qualquer momento. Mas nada se movimenta neste lugar, seja vivo ou morto. Mesmo assim, é melhor não arriscar demais. Na descida, uma mulher segurando uma sombrinha enrolada cruza a rua.

Bombas está mais calada, agora que é quase uma da manhã. Se algo primitivo ou sobrenatural ainda caminha por aqui, talvez tenha se recolhido aos cantos mais escuros, nos fundos da cidade. Um olhar furtivo para a escuridão das ruas transversais não dá indicação de que essa fantasiosa suposição possa estar correta. No morro, a névoa segue seu caminho e a única fileira de luzes que se vê ao longe é da iluminação pública do município de Itapema. Nada que se pareça com uma procissão do além.

Procissão das almas

Aproveito que amanhã é dia de Finados, esta noite, portanto, de Todos os Santos, para desenterrar – perdoem o trocadilho – um texto que havia feito faz algum tempo pensando em aproveitá-lo na reedição do livro Contam os Antigos. A reedição ainda não saiu e me parece cada vez mais distante de sair, quebrando assim uma promessa que havia feito lá na banca examinadora do curso de jornalismo. Faz bem uns oito anos, escrevi uma série de textos com essa finalidade, mas não fui adiante e a coisa datou um pouco, não consigo um gancho que traga novo interesse ao trabalho e, quanto mais o tempo passa, mais difícil realizar essa sequência da obra.

Bem, o fato é que os textos estão aí. Então, por que não publicá-los neste blogue? O texto que segue foge um pouco à categoria dos demais, certamente não iria aproveitá-lo no livro, tem um caráter mais pessoal, de divagação, sem dúvida algo inacabado, serve talvez como curiosidade.

Para o bem ou para o mal, segue o texto. Na sequência, publicarei um outro material, este sim devidamente formatado para o livro, sobre o mesmo tema:

Procissão das Almas. Foi num almoço, num dia qualquer, que minha tia falou a respeito. Nem sei porquê. Uma romaria de gente seguindo pelo morro, noite escura, círios acesos nas mãos. Em volta, no limite entre a luz das velas e a escuridão da noite, as almas, caminhando no mesmo passo. Foi assim que imaginei. Procissão das Almas… Nesse ano, na proximidade da Páscoa, vi quando passaram carregando cruzes de madeira para queimar diante da Igreja Matriz. Gente que vinha de Zimbros, com velas e cruzes nas mãos, cantorias nos lábios.

Depois lembrei, quando garoto, a gente espiando, detrás da janela gradeada da sala, em nossa casa em Porto Belo, pintada de verde musgo (hoje, não é mais dessa cor), olhando a esquina das ruas de terra adiante, o bambuzal escuro (esse não existe mais), esperando a madrugada e temendo ver as almas que passeiam pelas encruzilhadas na noite de finados. O mesmo ponto de observação em que ficávamos, lutando contra o sono e na esperança de que a sorte trouxesse o boi de campo bem para a frente de nossa casa, nas noites da farra de boi.

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