Escola de samba propõe “jogar tinta na avenida”com enredo inspirado em Suely Beduschi

Noite de domingo, 22h24. Nenhuma brisa sopra as folhas das árvores na Praça da Bandeira, centro de Porto Belo. Na ponta do quadrilátero, o popular Ica troca gestos afetuosos com um sujeito para lá de Bagdá enquanto que, em frente ao Carlão (bar), os instrumentistas da escola de samba Unidos de Porto Belo ouvem as instruções do diretor de bateria antes de reiniciarem o batuque.

Carlinhos Ribeiro, o maestro da agremiação, parece tenso. Um pouco antes, ele havia me dito que os ensaios começaram tarde, em comparação com o Carnaval anterior. Mais especificamente, no mês de outubro do ano que passou, enquanto que, em 2017, o trabalho começou em agosto. Mesmo assim, foram realizados até aqui 40 ensaios — uma maratona. O desfile está a cinco dias de distância e possivelmente haverá apenas mais um treino antes de estrearem na avenida.

— Tem que ficar ligado, porque essa é curta — instrui o percussionista de 38 anos, dedicando especial atenção a Leandro, o responsável pelo repinique que orienta o ritmo da bateria, e solfejando algo parecido com “tacutu-tacutu-tacutu-tacutu-tacutum-tum-tum-tuntundum” —Não tem tempo nem para respirar e pensar — ele adverte.

Unidos de Porto Belo acerta o ritmo para o quarto desfile carnavalesco (fotos: Ana Luisa)

Sentado à mesa do boteco em meio ao aglomero de gente da escola, Carlão (o sambista), com sua barba branca de pirata, microfone a postos, aguarda o filho encerrar a preleção. De repente soa o apito e a batucada reinicia com gosto. Carlão, André Miranda e Vílson Carioca puxam o samba-enredo, que este ano homenageia a artista plástica Suely Beduschi. Gão e Rafa se esmeram nos cavaquinhos enquanto que os tambores, chocalhos e tamborins sobem de intensidade. O ritmo é contagiante e logo Carlinhos, à frente da bateria, sorri à larga e gesticula feliz. Tudo indica que será um belo desfile.

UNIDOS DE PORTO BELO

A Escola de Samba Unidos de Porto Belo nasceu em novembro de 2015. Participará, portanto, de seu quarto desfile de Carnaval. Fará o trajeto entre o supermercado Ilhasul e a praça municipal a partir das 21 horas de sexta-feira (1/03). “[A expectativa] é que seja melhor do que o ano passado. Que as pessoas se impressionem mais”, me contou Carlinhos no dia seguinte. “Mas tá muito profissa essa coisa do enredo”, destaca o músico, que anda lendo um livro sobre a história do Carnaval em Santa Catarina e ficou, ele sim, impressionado com o pioneirismo do Estado no que diz respeito à festa de momo. Descobriu, por exemplo, que o carnaval de Floripa (1858) é anterior ao de Recife (1862) e Salvador (1884).

Samba de pai para filho: Carlinhos (dir.) reverencia o empenho de Carlão

Pioneirismo que, de certa maneira, a Unidos de Porto Belo reproduz. Resultado do empenho de uma diretoria que tem à testa o sambista Carlão Ribeiro (mas podem chamá-lo de “Carlão do Sambão”), ela é a primeira escola de samba para valer formada nesta península. Os primeiros instrumentos saíram do dinheiro que Carlão, 69 anos, entusiasta de primeira hora e motor dessa iniciativa, arrecadou fazendo rodar uma rifa. Em 2016, a sociedade inscreveu projeto na Lei Municipal de Incentivo à Cultura e, no ano seguinte, obteve recursos para melhorar o equipamento — em paralelo a uma doação de instrumentos feita pelo extinto Bloco da Manguaça. Depois entrou a iniciativa privada e a Unidos vem, aos poucos, ganhando corpo e expressão.

Quando sair à rua na próxima sexta-feira, ela deverá levar consigo mais de 400 pessoas — estima no “chutômetro” Carlinhos. Blocos carnavalescos, alguns municiados com fantasias cedidas pela Fundação Municipal de Cultura, que promove um concurso para premiar o melhor grupo de foliões, acompanharão a escola. Além da bateria, a Unidos conta com comissão de frente, porta-estandarte, musa, rainha de bateria, princesas e princesas mirins. “A ideia é que, futuramente, a escola tenha todas as alas que são requisito em escolas de samba”, prevê o diretor de bateria.

ATRAÇÃO DO VERÃO

Já se dizia que “jogo é jogo, treino é treino”, mas o fato é que a Unidos de Porto Belo faz sucesso muito antes de começar a batucar a sério. Os ensaios, a um compasso de dois por semana, atraíram público para as imediações da Praça da Bandeira e fizeram a alegria dos comerciantes do entorno: “Virou uma agenda [cultural] para a praça, para os estabelecimentos. Se fizer um trabalho bacana, pode crescer ainda mais”, acredita Carlinhos.

Além disso, não para de chegar gente interessada em participar. Entre os cerca de 40 ritmistas da escola tem pessoal de Tijucas, Itapema, Bombinhas e até do Rio de Janeiro. Garotada egressa das oficinas de percussão e maracatu de Carlinhos Ribeiro, moradores da cidade, famílias, crianças, idosos…. a agremiação abraça a todos, é exemplo de diversidade — o que, para o músico, é o grande barato desse trabalho.

Ensaios têm movimentado as noites na Praça da Bandeira

O “trabalho” na frase anterior não foi por acaso: a diretoria pena para fazer o barco andar, em razão das dificuldades de praxe: pouco dinheiro e muita dor de cabeça. A instituição sonha alto (ter uma sede para realizar oficinas de percussão), por isso cogita profissionalizar a bateria, para que possa realizar shows e conseguir recursos para a escola (que, a propósito, é sem fins lucrativos).

Convites já foram recebidos, mas esse direcionamento enfrenta uma questão de princípio: não é objetivo da Unidos peneirar os integrantes segundo critérios técnicos. Por enquanto, quem quiser tocar pode chegar. “Esta é a ideia: fazer bonito, mas também se divertir”, afirma o responsável pelo “fazer bonito” no asfalto da avenida principal da cidade.

SAMBA-ENREDO

Retomando uma ponta que ficou solta lá no começo desta reportagem, sobre o “samba-enredo profissa” de 2019, Carlinhos Ribeiro conta que Suely Beduschi ficou emocionada com a homenagem. A artista plástica natural de Ibirama vive em Porto Belo há 40 anos e é autora de uma premiada produção afro-indígena feita de objetos que ela própria encontra na natureza.

Suely Beduschi, ladeada pela neta Marina e pela filha Consuelo: homenagem

“As belas artes de Suely”, o samba em sua homenagem, é resultado de um quebra-cabeças compositivo. Sugestões foram se sobrepondo até que se chegasse ao resultado que o público cantará nesta sexta-feira. A letra é assinada por Bruno Kohl e Jaílton de Jesus e a música tem a coautoria de Carlinhos e Carlão Ribeiro, Didi Maçaneiro, André de Miranda e Gão.

“Todo mundo está bem feliz com o samba”, afirma Carlinhos, que ressalta o fato de a canção possuir dois refrões, recurso muito utilizado pelos sambas-enredo das escolas do Rio de Janeiro. Segundo ele, a música do ano passado, baseada nas descobertas de Dieter Kohl sobre o Paralelo 27, já conquistou elogios. “Quem sabe não recebemos convite para compor para alguma outra escola?”, especula o músico.

Em tempo: a Unidos de Porto Belo terá mais um compromisso na programação do “Agita Porto 2019”, o carnaval de rua promovido pela Fundação de Cultura do município: dia 4/03 (segunda), ela desfilará a partir das 21 horas na praia do Perequê, em frente ao antigo Hotel Blumenauense.