Cláudio Dadam extrai da simplicidade seus versos d’alma (*)

Sexta-feira, 1º de outubro de 2004, uma noite especial no centro de Porto Belo. O pequeno espaço da Livraria Oceânica, no Centro Comercial Dolce Vita, está apinhado de rostos conhecidos. Do lado de fora, nos bancos posicionados no passeio, entre concreto e grama, velhos amigos conversam animados, violões são tocados e antigas histórias saltam da memória. Do lado de dentro, atores novatos da “Trupe dos Avessos” fazem seu debut recitando versos escritos pelo homenageado da noite.

A plateia, metida entre livros e revistas, delicia-se com a encenação, que é coisa rara de se ver na cidade. Em um dos atores, os olhos crescem de apreensão, um suor fino marca a maquiagem branca sobre o rosto moreno, o texto escorrega da língua, não sai. Mas, para quem vê, entre goles de vinho e satisfação indisfarçada, tudo está perfeito. Do lado de fora, a mesa com uma cerveja no centro reúne em volta o pessoal da banda “Uniclãs”. O tema da conversa é a política (estamos nas vésperas da eleição municipal).

Do outro lado, Carioca puxa um chorinho, Claudinei emenda com um repertório pop. Todos concordam que a noite está excelente: um pouco do que há de melhor na produção artística local reúne-se ali e, no centro de tudo, o motor da festa sorri satisfeito: “Está tudo ótimo”, comenta Cláudio José Dadam, os trinta anos recém-completados dia 20 de setembro. Ao lado da mãe, Enedir Santiago, a caneta na mão, recebe os cumprimentos pelo lançamento do seu primeiro livro, “Sereno de Lírio”, e autografa alguns exemplares.

Essa noite assinala o nascimento do poeta.

Mano-Dadam
Mano Dadam: “Esse sereno é um perigo”

ESTADO POÉTICO

Não que Cláudio Dadam, que todos chamam de Mano, tenha se feito poeta durante o processo de composição de “Sereno de Lírio”. Na verdade, seus versos vêm de longe, estão com ele desde sempre, por assim dizer. Hoje, porém, como atestam os amigos, Mano é poeta 24 horas por dia. Basta uma conversa rápida para concordar com essa afirmação. Feito um profeta, ele fala por rimas, substituindo a conversa objetiva por citações nem sempre fáceis de compreender, mas que dão uma indicação precisa do quanto a veia poética está saliente em seu dia a dia. Claro que, para muita gente, este permanente “estado poético” causa alguma estranheza, para dizer o mínimo.

Mano demonstra certo desgosto com essa impressão. Conversamos na sua casa em uma tarde de terça-feira (2/11), e ele comentou que, na noite anterior mesmo, ouviu, de um chegado seu, comentários negativos que mexeram com ele: “Nem a fé é tão inabalável assim”, justifica, para depois emendar: “Fico ressentido com esse julgamento, mas a gente tira de letra, cria anticorpos”. Mano não conta o que exatamente ouviu, mas, ao que parece, o colega teria questionado a autenticidade da sua personalidade artística, insinuando que se trata de um modismo, uma influência exercida por terceiros.

Tudo porque, como já se falou, Mano parece ter se revelado poeta ontem. O que muita gente não sabe, e ele conta agora, é que seus versos remetem aos bancos da escola, lá pela quinta ou sexta série da Escola Básica Tiradentes. O menino daqueles dias se empenhava em escrever boas redações e as professoras coroavam seus esforços com elogios. Aos onze anos, inspirado pelos amigos, produziu uma espécie de zine, chamado “O sol, o Sagrado” (um trocadilho com a palavra “solo”). Aquele ano, porém, ficou marcado por outro motivo: foi em 1985 que o avô, Zózimo Antônio Santiago, morreu. A notícia da morte veio primeiro como pressentimento e Mano passou, a partir dali, a caminhar de acordo com a sua intuição.

FUTEBOL

Dos primeiros tempos de criação não restaram muitos vestígios. Aos dezessete anos, o rapaz lotou uma caixa de papelão com cartas, textos, desenhos e rimas, tudo o que dizia respeito à sua vida, convivência e segredos afetivos, e lançou ao fogo, essa ferramenta voraz do inquisidor. O artista explica que a atitude, um tanto extremada, foi uma forma de camuflagem, o escudo de uma personalidade tímida e reservada. Com isso, o poeta ficava escondido, negligenciado no fundo do inconsciente. Sobrava o esportista.

Mano passou boa parte da juventude correndo atrás de uma bola de futebol. Nesse esporte, que ainda pratica com disposição, é reconhecido como craque. Grandalhão, rápido e habilidoso, possui espaço certo em qualquer equipe da região. Durante uma época, tentou profissionalizar-se no esporte, mas foi um período de idas e vindas que não resultou em muito sucesso. O poeta ficou por trás das cortinas, aguardando sua vez.

Para encurtar uma história longa e chegar ao atual momento de criação literária, basta dizer que, a partir de setembro de 2002, Mano passou a escrever compulsivamente. Encheu várias folhas de cadernos com seus versos, material suficiente para editar treze livros – cada qual com uma temática diferente – e publicou o de estreia, “Sereno de Lírio”. O título vem de uma antiga advertência que a avó, Leontina Santiago, lhe fazia quando moleque: “Cuidado com esse sereno, que é um perigo”. Do conselho ele partiu para uma viagem ao passado, relatou suas experiências e, sobretudo, exaltou a sabedoria dos mais velhos, algo bastante significativo nesses tempos de rebeldia e desobediência juvenil.

VERSOS SIMPLES

Os versos do livro são simples, despojados, com uma rima bem marcada. O conteúdo, além de referências ao passado e ao convívio familiar, é carregado de ensinamentos que a vivência do autor acumulou e, generosamente, compartilha com o leitor. Não quer dizer, por outro lado, que Mano pretenda dar lições de moral, justo ele que vive, como faz questão de ressaltar, uma vida desprovida de ambições e levada a extremos. Nada disso. Apenas reflete a angústia do artista perante um mundo cada dia menos solidário, menos humano. Mesmo assim, sua poesia não deixa, em momento algum, de ser positiva, esperançosa. Essa característica é marcante também na obra ainda não publicada. Mano planeja para o início de 2005 levar ao prelo “Sonhos Azuis”, coletânea de versos apanhados ao acaso, durante passeios oníricos. Na sequência deverão vir “As Escrituras do Ar”, cujos temas, curiosamente, são releituras daqueles antigos textos que viraram cinzas na fogueira, mas que, como fênix, voltaram exigindo seu lugar, e “O Livro Negro”, uma apreciação sobre as tensões e a hipocrisia escondida no convívio familiar, mas que nem por isso dissipam a ternura do lar.

Muito mais ainda há de vir da caneta inquieta de Mano Dadam. Encharcado no sereno, vivendo como boêmio na noite da cidade, esse rapaz “da cor da lua”, de cabelos compridos, barba por fazer e sorriso largo renuncia à ira e vive de sonhos. O maior deles, transmutar seus versos em pão, viver da sua arte com a mesma simplicidade que são seus versos, celebrar a sua espiritualidade e, vez por outra, tocar as pessoas com a poesia que ele retira da alma. Como o poeta mesmo diz: “A minha consciência me permite saber o que eu sou, mas não o que eu posso ser”. Que seja assim, então.

(*) Texto desenvolvido originalmente para a disciplina de História da Arte do curso de Comunicação Social (Jornalismo) da Universidade do Vale do Itajaí, em novembro de 2004