Biel coleciona música (e muito mais)

Audiófilo e fuçador, Carlos Gabriel construiu um acervo de bolachões de respeito

Na Olavo Berlinck, uma estreitíssima rua paralela à avenida principal de Tijucas, encontramos um gourmet. Não, Biel não é um apreciador da alta gastronomia (ou seria? Acabou que não lhe perguntei a respeito). Ele é, isso sim, um degustador da fina-flor do samba e da MPB, o que faz com a cerimoniosa dedicação de qualquer bom “garfo”. Podemos dizer, para melhor compreensão, que Biel coleciona música.

“Eu gosto de guardar velharia”, descomplica o tijuquense de 35 anos que traz na certidão o aristocrático nome de Carlos Gabriel de Campos Silva. Topógrafo a serviço da concessionária Autopista Litoral Sul há uma década, Biel é talvez um dos mais importantes colecionadores de música brasileira da região.

Essa importância (atribuída por mim) não se mede na quantidade de discos de vinil que ele tem na casa que divide com sua mãe, dona Janice. Deve possuir pouco mais de mil “bolachões”, rigorosamente organizados em um armário no seu quarto e também — nem tanto — em caixas espalhadas pela residência. O próprio Biel reconhece: tem gente por perto com muito mais do que isso. Porém, ele faz uma distinção importante: os outros são apenas “acumuladores”.

Biel exibe alguns dos seus troféus: “Não vendo e não troco”

Gabriel, por outro lado, é um entendido. Sua paixão por vinis começou lá por 2007. Um amigo trouxe-lhe do Rio de Janeiro uma cópia do álbum Da lama ao caos (1994), do Chico Science & Nação Zumbi. Na época, da coleção de discos que seu irmão Cláudio uma vez possuiu, havia sobrado apenas um Catch a fire, clássico de 1973 de Bob Marley, e um disco de música nativista (dOs 3 Xirus, aparentemente).

Não havia ainda a febre do vinil, mas Biel achou que seria interessante arranjar um toca-discos e adquirir alguns LPs, então vendidos a preço de banana nos sebos ou doados aos montes por quem queria se livrar deles. Começou a bater ponto na Casa Aberta, clássico endereço dos amantes de discos e livros usados de Itajaí, e a percorrer os anúncios do site do Mercado Livre, em busca de lotes de álbuns à venda. “Aí, a brincadeira começou a ficar cara”, reconhece.

“O som do vinil é melhor, mas tem que ter um bom prato, uma boa caixa”

No início, o geomensor (e também técnico em administração, técnico em edificações e tecnólogo em gestão ambiental) tinha como alvo os discos de Música Popular Brasileira e seus intérpretes mais conhecidos, como Gilberto Gil, Caetano Veloso e Chico Buarque. Aos poucos, porém, seu gosto pendeu para o samba de Cartola, Paulinho da Viola, Clementina de Jesus e outros mestres do estilo.

Mas o hábito de adquirir discos em lote, na esperança de encontrar alguma “mosca azul” — e também o impulso de comprar muita coisa apenas pelo que sugeria a capa — fez com que ele acumulasse mais do que queria. Por acaso, em Porto Belo, os comerciantes do centro da cidade promoveram uma espécie de bazar e feira de artesanato chamada Conviver na Vila. Foi em 2015. Biel recebeu um convite para levar o excedente e vender durante o evento.

O resultado foi promissor. Daí para frente, ele passou a frequentar feiras de discos pela região. Encontrou uma comunidade entusiasmada e se sentiu em casa, aprendendo com os caras e especializando o seu entendimento musical — que também abre espaço para a música catarina (é seu objetivo lançar uma compilação de artistas do Estado. Em vinil, naturalmente). O lucro ficou em segundo plano; o que valia era a troca de informações.

Hoje em dia, não se acha mais disco bom a preço baixo. O mercado de vinil aqueceu no mundo inteiro, as velhas prensas voltaram a funcionar e as gravadoras retomaram os lançamentos em LP. Como consequência, rarearam as pechinchas (nada mais de achar disco a 3 reais, como um do Fagner que, cúmulo da sorte, trazia dentro providenciais R$ 600 — “eu tava f…. na época”). Biel, então, largou a venda de discos.

AUDIÓFILO

Mas não largou o vinil. Em vez disso, ele aprofundou seu interesse pelo assunto, investindo em equipamentos capazes de tocar suas preciosidades com a fidelidade que todo audiófilo merece. Assim, adquiriu desde um moderno toca-discos Pro-Ject a uma elegante vitrola embutida dos anos 1940, entre outras que Biel, com seu tique de colecionador de cacarecos, não podia deixar passar.

“Disco é diferente. É como uma música gourmet”, explica. Para ele, não é apenas o som, mas o prazer de manusear o bolachão, de correr os olhos sobre capas que são verdadeiras obras de arte e estudar os encartes, desvendando músicos, arranjadores e produtores. Uma experiência auditiva, tátil e visual que nenhum serviço de streaming poderia igualar. Por isso, acredita, o vinil voltou para ficar: “É o futuro”.

Recentemente, Biel incrementou seu acervo de itens musicais com a aquisição de raridades, como uma composição datilografada por Chico Buarque (assinada no verso pelo músico e familiares), uma partitura manuscrita de João Gilberto, fotos de ensaios para o álbum de Cartola, Nelson Cavaquinho e outros sambistas e slides de um trabalho de Pixinguinha.

Seu objetivo não é lucrar com isso, mas garantir que o material não se perca. O plano é doar tudo para alguma instituição dedicada à memória da música brasileira, como o Museu do Samba, no Rio. Ou então, dedicar um espaço especial na casa que pretende construir em Porto Belo para morar com Daiana Serpa, 30, sua (nem tanto) cúmplice nesse garimpo sem fim. Às vezes, quando comete alguma extravagância em suas transações pelo Ebay, imagina o que a companheira dirá: “Ela vai me matar!”

Para bem dos planos do casal, é bom que alguém lhe imponha um limite, pois Biel é compulsivo. Isso se deve, talvez, à sua curiosidade por tudo que tenha história, seja musical ou não. O que ele não tem é apego: todo o seu acervo vai para jogo facilmente, é só fechar negócio com ele.

Acervo de Biel conta com mais de mil títulos

Todo vírgula. Os três primeiros do Cartola e os discos de Lenine (Labiata) e Chico (Caravanas) que Biel conseguiu que os próprios autografassem, estão definitivamente fora de catálogo: “Não vendo e não troco”.

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  1. Cezinha Silva

    Sou fã de vocês 2, Biel e Dil! Muito bom ouvir as histórias do Biel, pois apesar de sempre nos encontrarmos não conhecíamos muito de onde esse interesse dele pela música nasceu.

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