Como é normal de qualquer cara que tenha crescido num ambiente impregnado de acordes, Ângelo César da Silva, 35, corria mesmo sério risco de se tornar o músico que é. Contrabaixista com contribuições em boa parcela da produção musical do Estado e tendo conhecido um relativo estrelato compondo a “cozinha” da festejada banda portobelense Uniclãs, Cezinha faz pouco mais de um ano decidiu assumir a difícil tarefa de pagar suas contas exclusivamente com o suor da sua arte. Percalços à parte, está satisfeito com sua decisão.

Nas noites de sexta ou sábado, o Tatuíra, no centro de Porto Belo, é o palco mais frequente do músico. Cezinha, entretanto, se desdobra: grava com artistas já tarimbados, muitos dos quais é fã assumido (o itajaiense Vê Domingos é um deles), participa do Sarau Afro-açoriano, premiado projeto de música folclórica de Porto Belo, do Música Orgânica, capitaneado pelo ex-parceiro de Uniclãs André “Coveiro”, e também dá aulas do seu instrumento em escolas de música e para particulares. “Não tem como ser só uma coisa”, explica. “Todo dia tem que estar correndo atrás”.

Filho e neto de cantadores de reis (sua reminiscência musical mais primitiva é um “terno” que testemunhou na infância, na casa de vizinhos na Enseada Encantada), natural de Porto Belo, quando garoto Cezinha se apropriou do violão paterno e criou o hábito de se trancar no quarto para aprender a tocar e compor. Tinha nessa rotina a cumplicidade do primo Jefferson Otto. Juntos, rabiscavam composições, curtiam o início da MTV no Brasil, ouviam discos e dividiam o gosto pelo pop rock nacional do final dos anos 1980, começo dos 90.

Nesse período, Cezinha vivia em Itajaí. Quando, aos dezessete, voltou a morar em Porto Belo ― que havia deixado aos seis ― ele e o primo se uniram a André Gomes de Miranda. “Coveiro” já cantava e tocava, e foi fundamental para alavancar os sonhos da dupla. Juntos, convocaram outros aspirantes a músico, arranjaram instrumentos emprestados e começaram a animar os intervalos de recreio no Colégio Estadual Tiradentes, sob o nome Cordas de Varal. Tornaram-se populares entre a garotada da escola, embora o som não fosse aquelas coisas, segundo Cezinha.

Na época, outro colega tocava baixo e, quando saiu, não restou-lhe alternativa que não assumir a função.

070315-Tatuira-Cto-Grande-(5)
Cezinha: “Tô ralando bastante”

E foi com ele tocando baixo que os amigos fundaram a Tormenta, um estágio musical um pouco mais avançado, com apresentações em bares e eventos da cidade. A banda terminou e os integrantes se separaram: Cezinha, Jeffinho e o guitarrista Alex Sancho ― outro nome que terá importância na história do músico ― foram para a Gato Preto, de Tijucas; Coveiro se reuniu a outros colegas e criou a Al Jihad.

UNICLÃS

Não demorou, entretanto, para todo mundo voltar a se reunir, dessa vez sob as asas de um voo bem mais ambicioso: a Uniclãs. O estopim dessa reunião foi a descoberta da veia artística do também primo Fernando Kruscinski: Nando não apenas compunha, como cantava bem, possuía timbre marcante. Em torno dele, todos os amigos resolveram apostar num projeto autoral. Batizaram a iniciativa Uniclãs para evidenciar a mistura de influências musicais que a banda teria e a forte afinidade entre todos.

“Era mais que uma banda. Era uma família”, lembra Cezinha com saudade. “Era” talvez não seja o tempo verbal mais correto, porque o grupo está numa espécie de stand by, após várias idas e vindas. Mas o período mais marcante da banda, de fato, passou. Foi no início dos anos 2000, quando pôs seu nome no mapa da música catarinense, conquistando um festival de bandas em Joinville, e gravando um clipe como prêmio, depois uma demo e, em 2003, embarcando para São Paulo para gravar, no estúdio do ex-RPM Luiz Schiavon, seu primeiro álbum, Viagens no Exílio.

“A gente nunca tinha saído da nossa região”, Cezinha sublinha a mudança que isso representou. Talvez uma mudança muito súbita, e por isso a rapaziada não conseguiu administrar, ele pondera. A Uniclãs obteve sucesso, realizou grandes shows, o último no teatro de Itajaí, em novembro do ano passado, em mais uma tentativa de retorno. Uma nova reunião, no momento, não parece provável.

NOVOS PROJETOS

Cezinha lamenta, mas não tem muito tempo para remoer o passado. É preciso certo malabarismo para administrar a carreira de músico, colocar o contrabaixo a serviço de diferentes artistas e da aspiração de quem o tem como referência. Para isso, “cancha de palco” só não basta. Por isso, Cezinha concluiu o Conservatório de Música de Itajaí (onde conheceu a intérprete Adriana Benvenuti, com quem casou há dois anos e meio) e está cursando bacharelado em música em Curitiba (PR). “Tô ralando bastante”, garante.

E nisso já se vão uns vinte anos de “ralação”. Natural que, em algum momento, uma sombra de dúvida paire sobre sua cabeça. É porque a rotina às vezes pode esmagar o entusiasmo e nos fazer encarar a temível pergunta: “Será que estou no caminho certo?”. Cezinha mais de uma vez se questionou a respeito. O tempo tem lhe ajudado a formular a resposta: “É a minha profissão”. Uma sentença simples que ele faz acompanhar pela certeza de que dificuldade e recompensa caminham num mesmo compasso, tecendo melodias em tons graves a intervalos de terças, quintas e sétimas, maiores e menores, acordes que o portobelense domina com a mesma facilidade com que se espana da mente uma ideia ruim. Cezinha é músico. E gosta disso.