Categoria: Personagens Page 1 of 3

Postes feios merecem cores bonitas

Cartazista melhora a indicação de seu endereço e inicia movimento de renovação urbanística

No disco de 2006 da banda blumenauense Stuart (de “punk brega”, segundo definição de seu cabeça, Gustavo Kaly), há certa canção sobre uma banda que está na bica de participar de um show de hardcore. O problema é que, naquele corre para divulgar o evento, o lote de cartazes encomendado da gráfica saiu péssimo. “Precisamos de meninas bonitas para aplaudir as nossas músicas, mas quais as meninas bonitas que irão com cartazes feios?”, questiona o líder do grupo, para depois concluir que o desfecho não poderia ter sido outro — afinal, “postes feios merecem cartazes feios”.

A verdade é que os postes, ainda que absolutamente necessários, carecem de estética. Não falamos, naturalmente, dos mais ornamentais, que às vezes vemos iluminar com garbo e dignidade as praças e os calçadões à beira-mar. Falamos dos trambolhos que se enfileiram à margem de nossas ruas e avenidas — desempenhando papel relevante, não há dúvida, mas de um modo que os torna um estorvo urbanístico e um espetáculo triste ao olhar.

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Histórias de morte em balcão de bar

Plena manhã de quinta-feira e estou iniciando minha filha Cecília em uma velha tradição familiar: pouco antes da hora do almoço, nos encaminhamos ao bar do Miloca, ali perto da casa do meu pai, justamente para encontrar seu Arão.

Alguns minutos antes, estávamos, eu e ele, empenhados em derrubar um poste de concreto que havia na frente de casa e estava deteriorado pela maresia. Finda a tarefa, seu Arão resolveu tomar um gole.

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Piva e o Capitão Brasil

Era uma manhã de domingo e o seu Piva recebia, resignado, o derradeiro adeus. Ainda no carro, na chegada ao cemitério, Bete me lembrou da crença popular: quando alguém é enterrado num dia de sol, é porque se vai sem tristeza de partir. E o dia estava realmente lindo: um azul luminoso no céu e um calor que fazia pouco-caso de estarmos em pleno outono.

Imagino que o seu Piva não tivesse realmente motivos para se queixar. Viveu uma boa vida, desconfio. Talvez apenas lamentasse não conhecer o neto que só chegou dias depois. Ou, por outra, o tenha visto de passagem, se há algum lugar onde os que vão e os que chegam se encontram para um aceno.

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Biel coleciona música (e muito mais)

Audiófilo e fuçador, Carlos Gabriel construiu um acervo de bolachões de respeito

Na Olavo Berlinck, uma estreitíssima rua paralela à avenida principal de Tijucas, encontramos um gourmet. Não, Biel não é um apreciador da alta gastronomia (ou seria? Acabou que não lhe perguntei a respeito). Ele é, isso sim, um degustador da fina-flor do samba e da MPB, o que faz com a cerimoniosa dedicação de qualquer bom “garfo”. Podemos dizer, para melhor compreensão, que Biel coleciona música.

“Eu gosto de guardar velharia”, descomplica o tijuquense de 35 anos que traz na certidão o aristocrático nome de Carlos Gabriel de Campos Silva. Topógrafo a serviço da concessionária Autopista Litoral Sul há uma década, Biel é talvez um dos mais importantes colecionadores de música brasileira da região.

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Vadico bebia sangue

Em um raro retângulo de terra no meio do apinhado e caótico cemitério de Porto Belo, enquanto Betinho profere uma emocionada elegia para o Vadico, que espera em seu caixão que o deitem ao fundo da cova aberta, o orador exaltando o “espírito tropeiro” do Vadico, e uma sequência de rostos iguais ao dele, mas em idades diferentes (seus irmãos), ouvem graves essas palavras, passa-me pela cabeça, quente ao sol desta manhã de sábado, um pensamento esquisito: “Vadico bebia sangue”.

Era o que eu ouvia quando criança, na época em que o Vadico realmente se imbuía do “espírito tropeiro” do qual falava o Betinho. Naquele tempo, quando trabalhava no matadouro do seu Valter e exibia um físico robusto, diziam que ele, ao abater os animais que seriam vendidos no açougue do patrão, costumava sangrar os bichos e tomar, de um gole só, um copo do sangue ainda quente dos animais. Devia a isso a sua boa compleição.

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Seu Naro

Seu Naro observa as pessoas que andam de um lado para outro na praia da Sepultura e não gosta muito. “O peixe é como a gente”, ele diz, “aonde um vai, todos os outros querem ir”. Ou seja, se alguma tainha se sentir ameaçada pela presença de um turista na beira d’água, pode sumir e levar o cardume inteiro com ela.

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Seu Naro: “Aonde um peixe vai, os outros vão atrás”

Para se chegar a esta praia, é preciso seguir a avenida que atravessa Bombinhas até o seu final. Nesse ponto, descendo, chega-se ao Retiro dos Padres, nome mais comum da praia dos Ingleses. Antes, um descampado no lado esquerdo da estrada – com uma porteira obstruindo um caminho que se perde no mato – indica a entrada da Sepultura. Do lado da porteira, há espaço suficiente para uma motocicleta passar. A estradinha escorrega pelo morro, fazendo voltas. Um vira-lata deitado adiante, próximo de uma casa onde dois pedreiros trabalham, dá a sensação de se estar invadindo terreno particular.

Uns metros pelo caminho ladeado de mato e aparece um espaço gramado, no fim do qual há uma garagem aberta, de alvenaria, com espaço para três ou quatro carros. Atrás dela eleva-se um monte coberto de vegetação. Este molhe natural tem, à esquerda, uma fina faixa de praia, três barracões de pesca, uma ou duas casas. À direita, um costão pedregoso e o mar aberto.

De costas para quem chega, diante da garagem, seu Naro conversa com alguém pelo aparelho celular. Concorda, resmunga algo, desliga. Os barracões ali embaixo pertencem a ele, herança familiar, assim como este ponto de pesca. São três construções de madeira, seis metros de largura por doze de comprimento cada um. Entre o primeiro e o segundo, há umas fileiras de traves baixíssimas de varas de bambu, parecidas com obstáculos de corrida, só que rentes ao chão. Eram usadas para se esticar a rede ao abrigo da umidade, hoje servem apenas “para contar história”, como explica o proprietário.

Acomodados na descida do monte, os barracões parecem incrivelmente baixos, mas um homem de boa estatura caminha sem problemas debaixo desses telhados antigos. No do meio, uma porta lateral de correr, que mais parece uma janela, dá acesso ao interior. Seu Naro a empurra, passa para o lado de dentro e convida a entrar. O local está repleto de tralhas: velhas canoas, redes e outros apetrechos de pesca sem uso, tudo empoeirado. Nos fundos, dois gatos aproveitam uma tábua solta para invadir o recinto – devem usá-lo como abrigo. Rafi, um vira-latas pequeno, de focinho grisalho e pêlo avermelhado, companheiro do velho pescador, não dá bola aos intrusos.

Adiante, meio para fora na porta da frente escancarada, está a “Aventureira”, impetuosamente pronta para ir ao mar. É comum esta velha embarcação de 7,5 metros assumir a dianteira nas pescarias. Feita de canela-garuva, está equipada com redes para o cerco próximo da praia. Seu pai a adquiriu em 1930, mas Naro sustenta que ela possua entre 200 e 250 anos.

Uma vez, em Navegantes, Aventureira sumiu por quatro anos, depois apareceu novamente. Além desta, há nos abrigos outras cinco canoas, feitas de madeiras diversas: figueira, cedro, guarapuvú. Uma aposentada no fundo do barracão está amarelada pelo acúmulo de pó. Em seus dias de glória, conduziu o dono em viagens até Blumenau, Luiz Alves e outros municípios daquela região. Seu Naro e a tripulação saíam às seis da manhã, navegavam até às 10 da noite. Demoravam até quinze dias para voltar, período em que se vendia peixe e se comprava mantimentos para as vendas de Bombinhas. Uma vez, ele trouxe cachaça, mas se “incomodou” com um tripulante interessado em degustar a carga. Aí, não trouxe mais.

CAVERNA DO CABO

Desse tempo, ficou a canoa para testemunhar. E não só ela. Naro é um colecionador de relíquias, seu barracão um verdadeiro museu. Um remo aqui, umas boias de madeira amontoadas num canto, um rolete ali atrás, essas coisas revelam um pouco do passado de Bombinhas. E se tem algo que fascine este senhor, é contar histórias de sua terra. Embriagado com essa perspectiva, sai do barracão e procura no meio do mato o velho muro feito pelos escravos, motivo da mortal desavença que deu nome à praia. Encontra-o e caminha pelo morro acompanhando a construção de pedras até o seu final. Com Rafi seguindo na frente, sobe o elevado de terra, chega ao espaço gramado e indica, no outro lado, no meio do costão, um lugar misterioso, a Caverna do Cabo. Desce até lá, pulando de uma pedra a outra. Um escorregão inadvertido, um tombo, mas Naro já está de pé, sobe algumas rochas altas, chega a uma gruta formada pelas rochas.

Aqui, relatou sua avó, escondeu-se um soldado do Exército. Isso faz muito tempo. Vivia maltrapilho, alimentando-se de mariscos e peixes. Segundo contou no povoado, desertara durante a batalha decisiva da Guerra do Paraguai, em Cerro Corá, ao norte daquele país, travada entre fevereiro e março de 1870. Nela morreu o ditador paraguaio Solano López.

O “cabo” relatou que, na fuga, escondido próximo de uma fazenda, bebeu água misturada com sangue. Ele teria chegado à península vindo da região de Joinville, seguindo sempre pelas matas. Naro acredita que ele tenha achado o antigo “caminho dos índios”: Peabiru.

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Seu Naro, em seu rancho de pesca na Praia da Sepultura (fotos: Márcia Cristina Ferreira)

A jornalista paranaense Rosana Bond escreveu um livro a respeito dessa espécie de Caminho de Santiago tupiniquim. Em A Saga de Aleixo Garcia (1998), relata a façanha de Garcia, supostamente o primeiro habitante europeu de Santa Catarina. Em 1522 ou 1523, esse marujo português, sobrevivente de uma malfadada expedição liderada por Juan Diaz de Solís, que foi comido por guaranis, conduziu um grupo de índios carijós e mais alguns companheiros sobreviventes desde a ilha de Santa Catarina até o Alto Peru. Teria realizado a espantosa façanha de ser o primeiro homem branco a conhecer o reino dos Incas, antes mesmo do conquistador espanhol Antônio Pizarro. Voltou de lá forrado de ouro e prata, mas morreu no caminho.

Aleixo Garcia teria usado a estrada pré-colombiana chamada Peabiru (na língua dos nativos, “caminho de grama amassada”), uma rota sagrada dos índios guaranis que fazia ligação entre os oceanos Pacífico e Atlântico, passando por Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Mato Grosso do Sul, Paraguai, Bolívia e Peru.

Tão misterioso quanto o mítico Peabiru é o túmulo que está escondido em algum lugar da praia da Sepultura. Seu Naro volta ao barracão e pega num canto no chão um pedaço de pedra escura, porosa. A apresenta como prova da existência do tal túmulo. Lasca um pedaço para mostrar que é feita de óleo de baleia. Só ele sabe onde é o local e não conta para ninguém. Já ofereceram muito dinheiro pela informação (“daria pra ficar rico”, exagera), mas nem assim entregou o segredo. “Aí, acaba a história”, justifica.

Durante todo o tempo em que conversamos, seu Naro recebe chamadas ao celular. Atende, olha o mar, concorda, faz alguma observação e desliga. Segunda-feira, explica, capturaram 300 tainhas na Sepultura, um ou dois dias depois, mais 40. Quantidade considerada pequena. Teve um ano, 1949, que 42 mil foram arrastadas a esta praia. Barcos vinham de fora para comprar o peixe diretamente das redes. Era tainha que não acabava mais. Quase 60 anos depois, Naro mantém a vigília sobre um cardume escondido nas pedras, num ano em que a pescaria tem sido fraca por aqui. O celular toca novamente. Depois que ele atende e desliga, pergunto com quem fala tanto. É com o filho, que está em algum lugar do costão, atrás do montão de mato, atento à movimentação dos peixes. Neste momento, chega Claudir, o outro filho de Naro. Aproxima-se do pai e mostra que, para além das pedras, alguma coisa acontece:

– Olha ela, pulando lá fora!

Depois, se afasta para sentar-se numa pedra. Liga um rádio transmissor e troca impressões com o irmão, oculto em seu posto avançado. Coisas da modernidade: rádios e aparelhos celulares ajudando na tradicional pesca da tainha.

Nisso, seu Naro saiu para espantar uns turistas que acabam de chegar. São três casais. Vieram espremidos num fusca e pretendem acampar ali. O nativo explica que eles não podem ficar, o grupo argumenta, insiste, o pescador replica, a coisa ameaça descambar para a discussão, mas, no fim, ele cede e os seis partem pela trilha que leva ao matagal, na ponta da Sepultura, arcados com o peso das mochilas. Coisa de uma semana depois, Naro teria uma altercação muito maior pela frente, certamente o momento mais difícil de seus 80 anos de vida, quando um bando de violentos assaltantes invadiu sua casa. Naturalmente, não buscavam o velho tesouro do Adrião – queriam dólares.

(*) Texto escrito em 2006, para a segunda edição do livro Contam os antigos… História e lendas de Bombinhas

Xepa

Conheci a Xepa numa noite de quinta-feira, uns anos atrás. Cheguei ao local onde o pessoal treina taekwon-do, ao lado do supermercado Costa Esmeralda, e ali estava ela, entre o muro e a calçada no canto do prédio. Como havia um tempo para esperar, fui vê-la de perto. Algo em seu olhar denotava doçura e desamparo.

Ao final do treino, hora e meia depois, ela continuava no mesmo lugar. Fui para casa decidido a voltar e buscá-la. Não foi difícil convencer esposa nem sogra, e meia hora depois eu retornava para levar a Xepa comigo. Ela estava obedientemente à espera, e não reclamou quando a embarquei no carro, acomodando-se tranquilamente aos pés do banco do carona.

Xepa rapidamente se habituou ao novo lar. Era curioso, pois, ao mesmo tempo que apresentava sinais evidentes de abandono, parecia que não vivia nas ruas há muito tempo. Talvez alguém a estivesse procurando, então tratamos de espalhar a notícia do seu paradeiro.

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Xepa foi-se de nossa casa da mesma forma como chegou

Ninguém apareceu, entretanto. E a Xepa conviveu conosco durante quase dois anos. Mas já demonstrava idade avançada, os olhos já nublando sob o avanço da catarata… o que não a impedia de exercer uma avarenta vigília sobre a comida, para azar do Nick (que, aliás, faz poucas semanas nos deixou, depois de mais de quinze anos).

Até que ela adoeceu. Foi perdendo as forças e minguou. Um dia, a pobrezinha estava visivelmente sofrendo. Liguei para a veterinária em busca de orientação. Priscila me pediu que a trouxesse até o consultório.

Peguei-a com cuidado e a coloquei no fundo do carro, ao lado do banco do carona. Assim que se acomodou ali, parou de choramingar. Observava-me silenciosa enquanto fazia o curto trajeto até a clínica. Assim que cheguei, quando a fui retirar do carro, notei que tinha morrido.

Ao que parece, a Xepa estava apenas à espera de seu último passeio, para terminar seu tempo conosco da mesma forma como chegou. Cumprida a tarefa, deixou-se ir em paz.

Conversa com seu Nabor

Começo de noite em Porto Belo. O frio arrepia a pele enquanto espero um compromisso sentado no banco da praça central, lamentando a imprevidência de não ter trazido um casaco. Quase trinta minutos depois, convencido de que a reunião já era, percebo que o tempo não foi de todo desperdiçado: da direção do Baixio vem o seu Nabor, com o boné característico, as mãos às costas e o corpo levemente curvado para a frente. É a oportunidade que esperava de propor-lhe uma entrevista. Mas cumprimento-o quando passa e deixo que se vá. Vejo-o atravessar a praça em direção à avenida. Deve estar indo para casa. Olho no relógio e decido seguir o homem.

Alcanço-o duas quadras adiante, quase em frente à padaria da Catarina. Chamo por ele, que para e escuta enquanto explico meu projeto de recolher depoimentos sobre a história de Porto Belo a partir da vivência de alguns moradores. Uma pesquisa, afirmo (na verdade, a ideia é escrever um livro e também gravar um documentário com a parceria dos amigos Thiago Furtado, acadêmico de jornalismo, e Isa Manerich, fotógrafa). Poderia visitá-lo outro dia, na companhia desses colegas, e gravar uma entrevista? Seu Nabor responde que sim, mas não demonstra grande entusiasmo.

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Seu Nabor: “Corria Bombinhas inteira vendendo doces”

Conversamos no curto trajeto até a esquina que leva a sua casa. Quando já me despedia dele, o rosto se lhe ilumina e o velho carpinteiro naval, 89 anos de idade, conta que, faz alguns dias, umas moças do Rio de Janeiro conversaram com ele no Trapiche dos Pescadores. “Fizeram um monte de fotos”, diz, animado. Digo que vi um retrato seu recentemente, publicado pelo fotógrafo da cidade, Gilmar Castro (também autor da foto que ilustra este texto). “É um grande amigo meu”, replica.

Agora seu Nabor está mais à vontade e disposto a prosear. Lembra que aos sete anos “corria Bombinhas inteira, vendendo doces”. Recompõe, de memória, o local onde estamos tal como era antigamente, o engenho de açúcar que já não existe mais. Sorri ao contar da labuta diária: “A gente vivia sob jugo de trabalho pesado, mas era um tempo agradável”, recorda.

Seu Nabor revela que tem uma cirurgia marcada, para retirada de uma hérnia. Diante da incerteza do resultado, ouviu do médico que será coisa simples, uma vez que ele é magro, então o caroço não acumula muita gordura. “Vai ser o que Deus quiser”, pondera, reconhecendo que estamos aqui apenas de passagem, “emprestados pelo tempo”. E com essa reflexão ele se despede, não sem antes desejar um “Deus te abençoe”. Ao senhor também, seu Nabor…

Atualização em 30/01/19: Em 2015, seu Nabor teve o nome envolvido em um rumoroso caso de polícia, acusado de integrar um grupo de pessoas que aliciava menores. Chegou a ser preso, mas foi solto dias depois. Seu Nabor morreu em dezembro de 2017.

Cezinha: suor pela música

Como é normal de qualquer cara que tenha crescido num ambiente impregnado de acordes, Ângelo César da Silva, 35, corria mesmo sério risco de se tornar o músico que é. Contrabaixista com contribuições em boa parcela da produção musical do Estado e tendo conhecido um relativo estrelato compondo a “cozinha” da festejada banda portobelense Uniclãs, Cezinha faz pouco mais de um ano decidiu assumir a difícil tarefa de pagar suas contas exclusivamente com o suor da sua arte. Percalços à parte, está satisfeito com sua decisão.

Nas noites de sexta ou sábado, o Tatuíra, no centro de Porto Belo, é o palco mais frequente do músico. Cezinha, entretanto, se desdobra: grava com artistas já tarimbados, muitos dos quais é fã assumido (o itajaiense Vê Domingos é um deles), participa do Sarau Afro-açoriano, premiado projeto de música folclórica de Porto Belo, do Música Orgânica, capitaneado pelo ex-parceiro de Uniclãs André “Coveiro”, e também dá aulas do seu instrumento em escolas de música e para particulares. “Não tem como ser só uma coisa”, explica. “Todo dia tem que estar correndo atrás”.

Filho e neto de cantadores de reis (sua reminiscência musical mais primitiva é um “terno” que testemunhou na infância, na casa de vizinhos na Enseada Encantada), natural de Porto Belo, quando garoto Cezinha se apropriou do violão paterno e criou o hábito de se trancar no quarto para aprender a tocar e compor. Tinha nessa rotina a cumplicidade do primo Jefferson Otto. Juntos, rabiscavam composições, curtiam o início da MTV no Brasil, ouviam discos e dividiam o gosto pelo pop rock nacional do final dos anos 1980, começo dos 90.

Nesse período, Cezinha vivia em Itajaí. Quando, aos dezessete, voltou a morar em Porto Belo ― que havia deixado aos seis ― ele e o primo se uniram a André Gomes de Miranda. “Coveiro” já cantava e tocava, e foi fundamental para alavancar os sonhos da dupla. Juntos, convocaram outros aspirantes a músico, arranjaram instrumentos emprestados e começaram a animar os intervalos de recreio no Colégio Estadual Tiradentes, sob o nome Cordas de Varal. Tornaram-se populares entre a garotada da escola, embora o som não fosse aquelas coisas, segundo Cezinha.

Na época, outro colega tocava baixo e, quando saiu, não restou-lhe alternativa que não assumir a função.

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Cezinha: “Tô ralando bastante”

E foi com ele tocando baixo que os amigos fundaram a Tormenta, um estágio musical um pouco mais avançado, com apresentações em bares e eventos da cidade. A banda terminou e os integrantes se separaram: Cezinha, Jeffinho e o guitarrista Alex Sancho ― outro nome que terá importância na história do músico ― foram para a Gato Preto, de Tijucas; Coveiro se reuniu a outros colegas e criou a Al Jihad.

UNICLÃS

Não demorou, entretanto, para todo mundo voltar a se reunir, dessa vez sob as asas de um voo bem mais ambicioso: a Uniclãs. O estopim dessa reunião foi a descoberta da veia artística do também primo Fernando Kruscinski: Nando não apenas compunha, como cantava bem, possuía timbre marcante. Em torno dele, todos os amigos resolveram apostar num projeto autoral. Batizaram a iniciativa Uniclãs para evidenciar a mistura de influências musicais que a banda teria e a forte afinidade entre todos.

“Era mais que uma banda. Era uma família”, lembra Cezinha com saudade. “Era” talvez não seja o tempo verbal mais correto, porque o grupo está numa espécie de stand by, após várias idas e vindas. Mas o período mais marcante da banda, de fato, passou. Foi no início dos anos 2000, quando pôs seu nome no mapa da música catarinense, conquistando um festival de bandas em Joinville, e gravando um clipe como prêmio, depois uma demo e, em 2003, embarcando para São Paulo para gravar, no estúdio do ex-RPM Luiz Schiavon, seu primeiro álbum, Viagens no Exílio.

“A gente nunca tinha saído da nossa região”, Cezinha sublinha a mudança que isso representou. Talvez uma mudança muito súbita, e por isso a rapaziada não conseguiu administrar, ele pondera. A Uniclãs obteve sucesso, realizou grandes shows, o último no teatro de Itajaí, em novembro do ano passado, em mais uma tentativa de retorno. Uma nova reunião, no momento, não parece provável.

NOVOS PROJETOS

Cezinha lamenta, mas não tem muito tempo para remoer o passado. É preciso certo malabarismo para administrar a carreira de músico, colocar o contrabaixo a serviço de diferentes artistas e da aspiração de quem o tem como referência. Para isso, “cancha de palco” só não basta. Por isso, Cezinha concluiu o Conservatório de Música de Itajaí (onde conheceu a intérprete Adriana Benvenuti, com quem casou há dois anos e meio) e está cursando bacharelado em música em Curitiba (PR). “Tô ralando bastante”, garante.

E nisso já se vão uns vinte anos de “ralação”. Natural que, em algum momento, uma sombra de dúvida paire sobre sua cabeça. É porque a rotina às vezes pode esmagar o entusiasmo e nos fazer encarar a temível pergunta: “Será que estou no caminho certo?”. Cezinha mais de uma vez se questionou a respeito. O tempo tem lhe ajudado a formular a resposta: “É a minha profissão”. Uma sentença simples que ele faz acompanhar pela certeza de que dificuldade e recompensa caminham num mesmo compasso, tecendo melodias em tons graves a intervalos de terças, quintas e sétimas, maiores e menores, acordes que o portobelense domina com a mesma facilidade com que se espana da mente uma ideia ruim. Cezinha é músico. E gosta disso.

Mano Dadam

Cláudio Dadam extrai da simplicidade seus versos d’alma (*)

Sexta-feira, 1º de outubro de 2004, uma noite especial no centro de Porto Belo. O pequeno espaço da Livraria Oceânica, no Centro Comercial Dolce Vita, está apinhado de rostos conhecidos. Do lado de fora, nos bancos posicionados no passeio, entre concreto e grama, velhos amigos conversam animados, violões são tocados e antigas histórias saltam da memória. Do lado de dentro, atores novatos da “Trupe dos Avessos” fazem seu debut recitando versos escritos pelo homenageado da noite.

A plateia, metida entre livros e revistas, delicia-se com a encenação, que é coisa rara de se ver na cidade. Em um dos atores, os olhos crescem de apreensão, um suor fino marca a maquiagem branca sobre o rosto moreno, o texto escorrega da língua, não sai. Mas, para quem vê, entre goles de vinho e satisfação indisfarçada, tudo está perfeito. Do lado de fora, a mesa com uma cerveja no centro reúne em volta o pessoal da banda “Uniclãs”. O tema da conversa é a política (estamos nas vésperas da eleição municipal).

Do outro lado, Carioca puxa um chorinho, Claudinei emenda com um repertório pop. Todos concordam que a noite está excelente: um pouco do que há de melhor na produção artística local reúne-se ali e, no centro de tudo, o motor da festa sorri satisfeito: “Está tudo ótimo”, comenta Cláudio José Dadam, os trinta anos recém-completados dia 20 de setembro. Ao lado da mãe, Enedir Santiago, a caneta na mão, recebe os cumprimentos pelo lançamento do seu primeiro livro, “Sereno de Lírio”, e autografa alguns exemplares.

Essa noite assinala o nascimento do poeta.

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Mano Dadam: “Esse sereno é um perigo”

ESTADO POÉTICO

Não que Cláudio Dadam, que todos chamam de Mano, tenha se feito poeta durante o processo de composição de “Sereno de Lírio”. Na verdade, seus versos vêm de longe, estão com ele desde sempre, por assim dizer. Hoje, porém, como atestam os amigos, Mano é poeta 24 horas por dia. Basta uma conversa rápida para concordar com essa afirmação. Feito um profeta, ele fala por rimas, substituindo a conversa objetiva por citações nem sempre fáceis de compreender, mas que dão uma indicação precisa do quanto a veia poética está saliente em seu dia a dia. Claro que, para muita gente, este permanente “estado poético” causa alguma estranheza, para dizer o mínimo.

Mano demonstra certo desgosto com essa impressão. Conversamos na sua casa em uma tarde de terça-feira (2/11), e ele comentou que, na noite anterior mesmo, ouviu, de um chegado seu, comentários negativos que mexeram com ele: “Nem a fé é tão inabalável assim”, justifica, para depois emendar: “Fico ressentido com esse julgamento, mas a gente tira de letra, cria anticorpos”. Mano não conta o que exatamente ouviu, mas, ao que parece, o colega teria questionado a autenticidade da sua personalidade artística, insinuando que se trata de um modismo, uma influência exercida por terceiros.

Tudo porque, como já se falou, Mano parece ter se revelado poeta ontem. O que muita gente não sabe, e ele conta agora, é que seus versos remetem aos bancos da escola, lá pela quinta ou sexta série da Escola Básica Tiradentes. O menino daqueles dias se empenhava em escrever boas redações e as professoras coroavam seus esforços com elogios. Aos onze anos, inspirado pelos amigos, produziu uma espécie de zine, chamado “O sol, o Sagrado” (um trocadilho com a palavra “solo”). Aquele ano, porém, ficou marcado por outro motivo: foi em 1985 que o avô, Zózimo Antônio Santiago, morreu. A notícia da morte veio primeiro como pressentimento e Mano passou, a partir dali, a caminhar de acordo com a sua intuição.

FUTEBOL

Dos primeiros tempos de criação não restaram muitos vestígios. Aos dezessete anos, o rapaz lotou uma caixa de papelão com cartas, textos, desenhos e rimas, tudo o que dizia respeito à sua vida, convivência e segredos afetivos, e lançou ao fogo, essa ferramenta voraz do inquisidor. O artista explica que a atitude, um tanto extremada, foi uma forma de camuflagem, o escudo de uma personalidade tímida e reservada. Com isso, o poeta ficava escondido, negligenciado no fundo do inconsciente. Sobrava o esportista.

Mano passou boa parte da juventude correndo atrás de uma bola de futebol. Nesse esporte, que ainda pratica com disposição, é reconhecido como craque. Grandalhão, rápido e habilidoso, possui espaço certo em qualquer equipe da região. Durante uma época, tentou profissionalizar-se no esporte, mas foi um período de idas e vindas que não resultou em muito sucesso. O poeta ficou por trás das cortinas, aguardando sua vez.

Para encurtar uma história longa e chegar ao atual momento de criação literária, basta dizer que, a partir de setembro de 2002, Mano passou a escrever compulsivamente. Encheu várias folhas de cadernos com seus versos, material suficiente para editar treze livros – cada qual com uma temática diferente – e publicou o de estreia, “Sereno de Lírio”. O título vem de uma antiga advertência que a avó, Leontina Santiago, lhe fazia quando moleque: “Cuidado com esse sereno, que é um perigo”. Do conselho ele partiu para uma viagem ao passado, relatou suas experiências e, sobretudo, exaltou a sabedoria dos mais velhos, algo bastante significativo nesses tempos de rebeldia e desobediência juvenil.

VERSOS SIMPLES

Os versos do livro são simples, despojados, com uma rima bem marcada. O conteúdo, além de referências ao passado e ao convívio familiar, é carregado de ensinamentos que a vivência do autor acumulou e, generosamente, compartilha com o leitor. Não quer dizer, por outro lado, que Mano pretenda dar lições de moral, justo ele que vive, como faz questão de ressaltar, uma vida desprovida de ambições e levada a extremos. Nada disso. Apenas reflete a angústia do artista perante um mundo cada dia menos solidário, menos humano. Mesmo assim, sua poesia não deixa, em momento algum, de ser positiva, esperançosa. Essa característica é marcante também na obra ainda não publicada. Mano planeja para o início de 2005 levar ao prelo “Sonhos Azuis”, coletânea de versos apanhados ao acaso, durante passeios oníricos. Na sequência deverão vir “As Escrituras do Ar”, cujos temas, curiosamente, são releituras daqueles antigos textos que viraram cinzas na fogueira, mas que, como fênix, voltaram exigindo seu lugar, e “O Livro Negro”, uma apreciação sobre as tensões e a hipocrisia escondida no convívio familiar, mas que nem por isso dissipam a ternura do lar.

Muito mais ainda há de vir da caneta inquieta de Mano Dadam. Encharcado no sereno, vivendo como boêmio na noite da cidade, esse rapaz “da cor da lua”, de cabelos compridos, barba por fazer e sorriso largo renuncia à ira e vive de sonhos. O maior deles, transmutar seus versos em pão, viver da sua arte com a mesma simplicidade que são seus versos, celebrar a sua espiritualidade e, vez por outra, tocar as pessoas com a poesia que ele retira da alma. Como o poeta mesmo diz: “A minha consciência me permite saber o que eu sou, mas não o que eu posso ser”. Que seja assim, então.

(*) Texto desenvolvido originalmente para a disciplina de História da Arte do curso de Comunicação Social (Jornalismo) da Universidade do Vale do Itajaí, em novembro de 2004

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