Romaria do Além

Ah sim, falávamos da Procissão das almas e dos textos que estão na gaveta, à espera de uma improvável segunda edição do Contam os Antigos. O texto abaixo escrevi como introdução a um capítulo que trata dessa curiosa crença que, aliás, não é exclusividade nossa, trata-se de uma herança que nos chegou de além-mar. Bem, importa que fiz na ocasião uma incursão até o cemitério de Bombinhas na hora propícia (à meia-noite), num esforço de jornalismo “gonzo” para descobrir alguma igualmente improvável manifestação do Além. Começa assim…

“Não é todo mundo que vê a procissão das almas”

Passa um minuto da meia-noite. Na Governador Celso Ramos, a última Praiana do dia reduz a marcha antes de vencer as duas lombadas na curva final da avenida, rumo a Canto Grande. Dentro desse ônibus, amarelo com listras em degradê vermelho, talvez durma algum estudante universitário cansado, voltando de Itajaí ou de Balneário Camboriú. No mais, exceto pelo motorista e pelo cobrador, é provável que esteja vazio.

Choveu durante o dia inteiro. Agora, caem apenas umas gotas retardatárias. O céu está limpo e claro, dá para distinguir nuvens rosadas na direção do Oeste. Amanhece. No asfalto molhado da SC-412, passam alguns carros, separados por intervalos de minutos. Alguém caminha solitário na altura da “Volta do Almeida”. Na subida do morro, corre uma névoa rasteira, branca em contraste com o fundo iluminado de uma placa publicitária.

Bombas está quieta neste início de madrugada. O mar, ao contrário, mostra-se agitado. Linhas brancas de espuma saem do escuro e, uma após a outra, as ondas despencam na areia. Embora quieto, o bairro não está exatamente dormindo. Alguns estabelecimentos ainda funcionam. O “Restaurante do Olímpio”, por exemplo, recebe algumas pessoas.

Noutra esquina, um grupo conversa. Um carro pára rapidamente, pergunta algo a eles, depois segue vacilante. Um ciclista surge na avenida, as lanternas dos pedais refletindo os faróis que passam. Um pouco mais na frente, um sujeito de boné caminha quase no meio da pista, olha para trás e então decide seguir pela calçada. Há mais gente, sentada nas escadarias da fachada de um edifício no final da Leopoldo Zarling. Dessa altura, já dá para ver a torre da capela, iluminada num brilho amarelado, como o produzido por lâmpadas comuns.

Ao final da “Curva do Piolho”, no início da descida que conduz ao Centro, uma obra no calçamento dividiu a pista no meio, uma parte está interditada e ficou difícil passar. Mais adiante, a mesma obra transformou meia pista numa vala lamacenta.

Bombinhas está igualmente quieta, embora seja o início de um feriadão. Ali na frente, empregados recolhem as cadeiras de um restaurante e uma moça aguarda sentada no ponto de ônibus. O vigia do empreendimento hoteleiro mais vistoso do centro, a Vila do Farol, conversa com uma mulher. Quando amanhecer, será 2 de novembro, quinta-feira, dia de Finados. Por enquanto, é a Noite de Todos os Santos.

Meia volta e lá está, vista pelo lado de Bombinhas, a capela da Imaculada. A subida que conduz até ela se perde num breu absoluto. Lá em cima, porém, o cemitério surge iluminado. De perto, a igreja se apresenta muito branca. Um potente holofote despeja sua luz sobre a estrutura. Tudo está calmo, só se ouve a cantoria solitária de um grilo e o chiado do vento, que sopra muito forte e remexe as folhas das palmeiras e dos arbustos. Embaixo, cintilam as luzes da cidade.

Nessa calmaria, o coração experimenta uma ansiedade, receio de que a coragem seja posta à prova a qualquer momento. Mas nada se movimenta neste lugar, seja vivo ou morto. Mesmo assim, é melhor não arriscar demais. Na descida, uma mulher segurando uma sombrinha enrolada cruza a rua.

Bombas está mais calada, agora que é quase uma da manhã. Se algo primitivo ou sobrenatural ainda caminha por aqui, talvez tenha se recolhido aos cantos mais escuros, nos fundos da cidade. Um olhar furtivo para a escuridão das ruas transversais não dá indicação de que essa fantasiosa suposição possa estar correta. No morro, a névoa segue seu caminho e a única fileira de luzes que se vê ao longe é da iluminação pública do município de Itapema. Nada que se pareça com uma procissão do além.

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Piô

  1. Zene

    Dil, muito bom o texto! Parabéns…crenças populares são sempre histórias que rendem muitos comentários!

  2. Oi Zene, obrigado! Documentar esse tipo de história é muito legal. E uma corrida contra o tempo, normalmente… Beijo.

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