Era uma manhã de domingo e o seu Piva recebia, resignado, o derradeiro adeus. Ainda no carro, na chegada ao cemitério, Bete me lembrou da crença popular: quando alguém é enterrado num dia de sol, é porque se vai sem tristeza de partir. E o dia estava realmente lindo: um azul luminoso no céu e um calor que fazia pouco-caso de estarmos em pleno outono.

Imagino que o seu Piva não tivesse realmente motivos para se queixar. Viveu uma boa vida, desconfio. Talvez apenas lamentasse não conhecer o neto que só chegou dias depois. Ou, por outra, o tenha visto de passagem, se há algum lugar onde os que vão e os que chegam se encontram para um aceno.

Convivi um pouco com o seu Piva, na época em que o Roberto fazia parte da turma. Frequentei sua casa nessa época. O Roberto, ele também Piva, estreou no grupo no dia do seu aniversário, 25 de setembro, numa excursão que fizemos a Brusque para um show de rock.

Fomos até lá todos felizes e nos sentindo destemidos ao arriscar a vida mal acomodados na traseira da caminhonete movida a gás (de cozinha) do Denis, cantando as músicas do nosso repertório e bebendo qualquer coisa de péssima qualidade.

Foi bem na época do movimento pelo impeachment do presidente Collor, 1992, e havia aquele clima de euforia, de que estávamos fazendo a coisa certa e que, no fim das contas, este país tinha, sim, jeito….

Cavaleiros do Apocalipse: Piva, ao centro, comanda a fuzarca

Saltamos da carroceria próximo ao palco, montado ao ar livre. Ao fundo, o iluminado Hotel Monthez parecia suspenso na escuridão. Enquanto as bandas faziam a passagem de som, a turma se divertia praticando seu esporte predileto: esculhambar Cacau Menezes, colunista do DC que, afirmava ele, havia ajudado a promover o evento.

Foi mais ou menos nesse momento que o Silvanio, já meio alto, subiu ao palco, tomou do microfone e passou a bradar palavras de ordem contra Collor de Mello. Detalhe: “Chuck”, como a gente o chamava, usava uma bandeira do Brasil amarrada ao pescoço, antecipando em 26 anos o figurino que se viu pipocar nas ruas do país às vésperas do primeiro turno da eleição presidencial deste ano. Nascia ali o “Capitão Brasil”, um ícone da nossa mitologia particular.

Empolgado com a audácia do “Capitão”, Piva não deixou por menos e também invadiu o palco, assumiu o microfone e resolveu reger a empolgada plateia com músicas populares do cancioneiro punk ― para diversão de João Gordo, da banda hardcore paulistana Ratos de Porão, principal atração da noite.

E o clima de anarquia seguiu noite afora, com o Candôco saltitando pelos suportes no fundo do palco e desligando as caixas de som (com qual objetivo, só Deus sabe).

A certa altura, o furtivo Candôco viu uma garrafa de uísque dando sopa no backstage e, digamos, subtraiu-a, despertando a ira de Gordo, que ameaçou parar o show em razão do sumiço da bebida. Lógico que celebramos ― com o uísque do Gordo ― a façanha do Candôco.

UM NOVO CAPITÃO

Tudo isso ocorreu faz muito tempo, e hoje a rapaziada praticamente dispersou. Recentemente, encontrei o “Robert” em duas ocasiões. A última delas domingo (7/10), no Tiradentes, durante a eleição do primeiro turno. Na conversa, nenhuma dessas reminiscências, apenas impressões sobre o futuro ― que, a propósito, parece que virá com um certo cheiro de naftalina.

Do Chuck, pouco sei. Mas realmente tenho visto muitos capitães Brasil por aí, e a tônica do discurso deles de algum modo se assemelha ao protesto que Silvanio conduziu naquela noite. É, novamente, a corrupção que mobiliza a indignação popular. A diferença, hoje em dia, é que não existe unanimidade. O que temos é uma cisão irreparável da sociedade ― e a exacerbação do ódio.

As ruas exalam uma virulência que não se conhecia naqueles tempos, resultado da capacidade que as pessoas têm hoje em dia de expor suas ideias, por mais condenáveis que sejam, sob o abrigo de um IP de computador. Não há o olho no olho, por isso cada um diz o que quer, numa competição alucinada para ver quem despeja nas redes sociais as piores barbaridades.

Mais do que isso, há um sentimento de desesperança e frustração que, canalizado de modo eficiente por forças ligadas a uma personagem até então obscura da política nacional, tem nos levado a uma histérica adesão ao discurso de enfrentamento do “tudo o que está aí”. Houve já uma figura que, como disse FHC (porém, noutro contexto), “vestiu o figurino”: chamava-se Fernando Collor de Mello.

Fico apenas imaginando se o Capitão Brasil dos nossos bons tempos aderiria a esse hipnótico sentimento nacional. Não dá para saber, pois já não somos os mesmos. O que temos para hoje é uma onda que, tal como A Onda, quer varrer as instituições e nos levar de volta a um tempo ainda mais sombrio do que aquele em que nos foi apresentado o famigerado Caçador de Marajás.