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Conversa com seu Nabor

Começo de noite em Porto Belo. O frio arrepia a pele enquanto espero um compromisso sentado no banco da praça central, lamentando a imprevidência de não ter trazido um casaco. Quase trinta minutos depois, convencido de que a reunião já era, percebo que o tempo não foi de todo desperdiçado: da direção do Baixio vem o seu Nabor, com o boné característico, as mãos às costas e o corpo levemente curvado para a frente. É a oportunidade que esperava de propor-lhe uma entrevista. Mas cumprimento-o quando passa e deixo que se vá. Vejo-o atravessar a praça em direção à avenida. Deve estar indo para casa. Olho no relógio e decido seguir o homem.

Alcanço-o duas quadras adiante, quase em frente à padaria da Catarina. Chamo por ele, que para e escuta enquanto explico meu projeto de recolher depoimentos sobre a história de Porto Belo a partir da vivência de alguns moradores. Uma pesquisa, afirmo (na verdade, a ideia é escrever um livro e também gravar um documentário com a parceria dos amigos Thiago Furtado, acadêmico de jornalismo, e Isa Manerich, fotógrafa). Poderia visitá-lo outro dia, na companhia desses colegas, e gravar uma entrevista? Seu Nabor responde que sim, mas não demonstra grande entusiasmo.

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Seu Nabor: “Corria Bombinhas inteira vendendo doces”

Conversamos no curto trajeto até a esquina que leva a sua casa. Quando já me despedia dele, o rosto se lhe ilumina e o velho carpinteiro naval, 89 anos de idade, conta que, faz alguns dias, umas moças do Rio de Janeiro conversaram com ele no Trapiche dos Pescadores. “Fizeram um monte de fotos”, diz, animado. Digo que vi um retrato seu recentemente, publicado pelo fotógrafo da cidade, Gilmar Castro (também autor da foto que ilustra este texto). “É um grande amigo meu”, replica.

Agora seu Nabor está mais à vontade e disposto a prosear. Lembra que aos sete anos “corria Bombinhas inteira, vendendo doces”. Recompõe, de memória, o local onde estamos tal como era antigamente, o engenho de açúcar que já não existe mais. Sorri ao contar da labuta diária: “A gente vivia sob jugo de trabalho pesado, mas era um tempo agradável”, recorda.

Seu Nabor revela que tem uma cirurgia marcada, para retirada de uma hérnia. Diante da incerteza do resultado, ouviu do médico que será coisa simples, uma vez que ele é magro, então o caroço não acumula muita gordura. “Vai ser o que Deus quiser”, pondera, reconhecendo que estamos aqui apenas de passagem, “emprestados pelo tempo”. E com essa reflexão ele se despede, não sem antes desejar um “Deus te abençoe”. Ao senhor também, seu Nabor…

Atualização em 30/01/19: Em 2015, seu Nabor teve o nome envolvido em um rumoroso caso de polícia, acusado de integrar um grupo de pessoas que aliciava menores. Chegou a ser preso, mas foi solto dias depois. Seu Nabor morreu em dezembro de 2017.

Pirão: e aqui chegamos ao fim

O jornal Pirão d’água durou até dezembro de 2001. Chegou até a edição 103. Na época, estava sendo tirado semanalmente. Mas, para mim, ele havia terminado antes.

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Terminou às vésperas de mais uma eleição, em setembro do ano anterior. Como é típico do período, os nervos estavam a mil e os problemas só começando para a gente. Calhou que o PDT, que estava com candidato no páreo (Arno Baron), nos procurou para publicar uma pesquisa favorável no jornal. E o Luiz concordou em publicar.

Mais tarde, porém, o PMDB, do Sérgio Biehler, surge com outra pesquisa, também solicitando espaço no jornal. Os resultados de cada uma completamente disparatados entre si. Mas havia uma compensação financeira maior nesta segunda proposta e devo dizer que a gente balançou, especialmente por achar que esta segunda pesquisa condizia melhor com a realidade. O PDT era apenas a terceira força e não havia número que pudesse dizer o contrário.

Mas havia um acordo firmado com o PDT e isso foi motivo de discussão entre a gente. Por outro lado, os peemedebistas pressionavam também. O jornal sairia exatamente na sexta antes da eleição. Com a pesquisa na capa, poderia ser decisivo no resultado das urnas.

E assim, um Candôco completamente indeciso pegou o Fiesta emprestado de sua mãe e partiu para São José, na Grande Florianópolis, sexta-feira à noite, para rodar o jornal.

Assim que pôs os pés na gráfica, já estavam lá o Valmor Moraes, vice da chapa trabalhista, e o Piti, advogando (pasmem!) pelo PMDB. E tome discussão, bate-boca, um querendo parar as máquinas, o outro que o jornal fosse imediatamente para as rotativas.

À beira de um colapso nervoso, o Luiz saiu da gráfica e caminhou pela ruazinha lateral sem saída onde ficava a Riosul até um barzinho que havia no final dela. Sentou junto ao balcão para tomar alguma coisa, com o Piti na sua orelha e sem saber o que fazer.

Lá fora, um orelhão que havia no lado do bar começa a tocar. Toca até que algum curioso resolve ir lá atender. O cara escuta e grita para dentro do bar:

– Tem algum Luiz Dadam aí?

O Candôco arregala os olhos e, sentindo-se dentro de um daqueles filmes de suspense, vai até lá atender. Era a esposa do Sérgio Biehler, Josiane, que resolveu aplicar um pouco mais de fervura na cabeça do pobre do Luiz. Perplexo – e já por essas alturas, furioso – o Candôco retornou até o balcão do bar, onde o Piti, em tom de quem sabe dessas coisas – e provavelmente sem gaguejar – lhe bate nas costas e diz:

– Bem-vindo à política, meu amigo…

Arão Mafra Filho

A Paixão sem farra

Amanhã será a Sexta-feira da Paixão e permanece a calmaria das últimas semanas. Para quem, nos últimos anos, acompanhou o auge e a agonia da farra do boi, quando esta virou caso de polícia, parece que temos, como diria Nelson Rodrigues, “um silêncio de mil catedrais”. Claro, tudo pode acontecer de hoje até domingo.

No entanto, parece realmente que a farra está sepultada. Houve casos isolados, repreendidos com brutalidade até. As próximas gerações, muito provavelmente, saberão dessa tradição só de ouvir falar.

Acho que já comentei por aqui, mas lembro com saudade do tempo em que, ainda garotos, acompanhávamos a farra por trás das janelas gradeadas lá da casa da minha mãe. Empoleirados no sofá, eu e os irmãos lutávamos contra o sono, espiando a rua vazia e escura, ouvindo o rumor da conversa dos adultos na esquina e os ecos distantes distantes do pessoal que “brincava” com o boi.

Se tivéssemos sorte, o animal passaria correndo feito uma assombração defronte nossos estarrecidos olhos. Talvez víssemos mesmo o espetáculo do boi lançando adiante algum farrista mais ousado.

Mais tarde, já maiores, junto com os outros garotos, pudemos “correr atrás do boi”. Devidamente paramentados (bermuda velha por cima de uma calça de moletom, outro moletom amarrado atravessado no peito e kichutes), ficávamos pendurados nas árvores, esperando o grande momento da “soltada”, lá onde hoje está o mercado do Romilton. Foi quando surgiram as primeiras lendas, com a do Jackson que, dizem, subiu num espinhento pé de “mamica-de-porca para escapar do boi. A árvore, testemunha silenciosa da veracidade ou não do “causo”, não existe mais  – seu Zé Antônio a derrubou.

Arão Mafra Filho

Depois vieram os mangueirões, as carreiras pela cidade, as semanas inteiras de soltadas que paravam as aulas no Tiradentes, caminhões boiadeiros em comboio pela cidade. Mais tarde, com a proibição, tudo foi se acabando.

Abandonei cedo a farra, primeiro por covardia, depois por desgostar da tradição. Não há como negar, é uma prática violenta. Depois de adulto, ainda participei de algumas, pois toda a turma queria ir, não havia jeito. O encanto, porém, já havia passado.

Nos tempos de Pirão, cobrimos algumas vezes a farra do boi. A proibição era assunto recente e a revolta dos farristas contra a imprensa, em especial, era enorme. O Candôco corria um especial perigo, pois, como fotógrafo, era a parte mais visível do “inimigo”. Uma foto memorável daquele tempo (preciso achá-la nos arquivos do jornal) foi tirada em Canto Grande. Um caminhão passava na avenida com um bando de farristas em cima. O boi não se via.

O Candôco subiu num muro e conseguiu fotografar o animal deitado amarrado no fundo da carroceria, congelando na imagem também as expressões de raiva e ameaça dos farristas. O jeito foi sair de lá rapidinho.

No Pirão, creio que exercíamos uma espécie de autocensura com relação à farra. Lembro de um editorial que escrevemos, no qual defendíamos a tradição, mas dávamos razão à proibição  – ambiguidade maior, impossível. Ou seja, saíamos pela tangente, embora nem, eu nem o Luiz fôssemos a favor da “brincadeira”. No fundo, é algo parecido com o que ocorreu até há bem pouco, quando políticos locais defendiam e até incentivavam a prática, pois não queriam ficar mal com seus eleitores.

A primeira cruzada

Erro grosseiro na capa roubou o gostinho da vitória

Após uma segunda edição bastante protocolar, cuja matéria de maior interesse estava no pé da página 7 (a primeira pesquisa eleitoral do jornal, realizada no bairro Araçá, tema que ainda daria muita dor de cabeça), em agosto de 1996 sairia, na edição de número 3, a primeira grande reportagem do Pirão d´água. Sua primeira cruzada, digamos assim.

A pauta estava bem ali na nossa frente, na baía de Porto Belo. Mas não lembro como chegou à nossa redação. O fato é que os barcos que faziam a pesca de atum viviam cercando isca viva nas proximidades da ilha João da Cunha, algo que contrariava a legislação ambiental. Os pescadores artesanais estavam furiosos, mas impotentes.

Resolvemos averiguar e, como se diz pomposamente por aí, “num esforço de reportagem” levantamos informações. Fomos ao Araçá tentar conseguir uma boa imagem dos atuneiros em ação. Lá, encontramos Teté, candidato a prefeito, que resolveu fazer uma média e ligar para o Ibama, denunciando o caso. Ninguém atendeu a sua chamada.

Mas conseguimos algumas imagens. Sem uma lente com zoom suficientemente amplo, as fotos não saíram lá aquelas coisas, e ficaram piores ainda na impressão do jornal (olhando agora, parecem essas fotos que se vê de supostos ovnis).

Ouvimos pescadores, políticos locais, entrevistamos o presidente da Colônia de Pescadores (que ingenuamente considerei uma espécie de Chico Mendes portobelense), obtivemos alguns números. “Nos últimos anos em Porto Belo nós temos assistido em silêncio à perpetuação de uma verdadeira afronta”, esbravejamos no editorial. Uma verdadeira bomba.

Faltou praticar melhor o jornalismo e ouvir o outro lado. Sequer suspeitávamos que muitos pais de família da região trabalhavam nos convés daqueles navios, ou que houvesse outros aspectos a considerar.

Foi também a primeira vez que passamos uma noite inteira trabalhando no jornal. Suamos para deixar tudo pronto, revisado, impecável. Às 7 da manhã do dia seguinte, seguíamos para casa como um bando de zumbis, esfalfados (acho que o Candôco ainda teria que levar o jornal até a gráfica que o rodaria, em Florianópolis).

Porém, nos sentíamos realizados. Estávamos cumprindo com nosso papel, abraçando uma causa importante, praticando jornalismo de verdade. Éramos os paladinos da justiça da vez. Só que, assim que chegaram os fardos de jornal, na primeira olhada, o Candôco deitou o olho sobre um erro grotesco no título da legenda, algo que, embora tívessemos visto e revisto à exaustão, acabou passando batido. Apenas isso bastou liquidar nosso sentimento de vitória…

A primeira edição

Primeira edição do Pirão d'água: candidatos na capa e problemas à vista

Pirão d’água, o retorno

Faz uns anos, um colaborador dos tempos de Pirão d’água, o Cacau, apareceu com a ideia de fazermos circular uma edição especial desse jornal, em homenagem ao semanário que deixou de circular lá se vão dez anos. Na ocasião, Candôco e eu nos empolgamos com a possibilidade, mas o plano não saiu da prancheta – fazer jornal impresso dá trabalho e custa algum dinheiro.

Mais recentemente, amigos tinham me sugerido lançar algo nessas redes sociais, Facebook e tal, mas isso é coisa que nunca me atraiu. Por outro lado, lá na revista onde trabalho, um colega sugeriu a criação de um blogue. Pensei a respeito… Com um só livro lançado, material para a continuação deste esfriando (congelando, na verdade) na gaveta, planos para um outro título no mais completo limbo, mais uns textos antigos, sobre coisas e pessoas de Porto Belo, do meu período acadêmico que gostaria de rever, tudo isso me pareceu sugerir que largasse um pouco de preguiça e começasse a lançar na web um pouco dessa produção. Com a prática – vai saber? – poderia engrenar e tirar da fila os projetos empoeirados.

E novamente o Pirão d’água. Se não me falha a memória, foram cinco anos de uma experiência jornalística, no mínimo, interessante. Com uma dose tremenda de boa vontade e as melhores
intenções (ainda que, de boas intenções o inferno esteja cheio), muito de ingenuidade e desconhecimento de causa, conseguimos fazer do Pirão algo relevante dentro do que se pode chamar “imprensa local” (o que, talvez, não seja grande coisa – vide Gazetas de Bombinhas, Planetários e exemplares do gênero). Na pior das hipóteses, produzimos um registro do cotidiano da
península durante o período em que o jornal circulou, anotamos nas páginas que já amarelaram um pouco da sua história.

É do conhecimento dos jornalistas que o jornal de ontem serve só para embrulhar o peixe de hoje, quando muito. Resolvi, pretensiosamente, contrariar a máxima, e trazer algumas das histórias
do Pirão d’água, coisas que talvez algumas pessoas ainda curtam lembrar, especialmente nossos parceiros de empreitada. E trazer a reboque outros textos, coisas que estavam no baú, jogar conversa fora, publicar uns rabiscos, umas fotos, fazer uns ensaios – enfim, para isso que servem
blogues. Vejamos até onde isso vai dar…

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