Em resposta a um comentário de Marcelo Sabin, que desde Porto Alegre acompanha as linhas tortas deste blogue, a propósito do meu último artigo, escrevi o seguinte: “Esta é uma das razões pelas quais, diferente de usar celular, não deixo de correr: mesmo que o trajeto seja sempre igual, a paisagem é sempre diferente”.

Não se trata de força de expressão, como a vez seguinte em que vesti os trapos que costumo chamar “meus tênis de corrida” e pus o pé na estrada, novamente sentido Araçá, facilmente constatou.

Não sei por que você corre. Supondo que corra (se não, coloque a atividade de que gosta no lugar do verbo indicado na frase). Eu corro para ter ideias (por causa também da paisagem, não esqueçamos).

Digam olá aos “meus tênis de corrida” (cuja aposentadoria já foi devidamente protocolada e aceita…
…muito embora o Tangerina tenha decidido enterrar o finado calçado de uma vez)

Qualquer escrevinhador de plantão sabe como é difícil parir um texto a partir de uma página em branco do Word. Para mim, correr é como fazer um carro teimoso pegar no tranco: encharco o cérebro de suor a ponto de, para se distrair do cansaço e das pernas bambas, ele começar a se esconder atrás de elucubrações e fantasias. Qualquer coisa que abstraia do esforço.

Num dia bom, surgem algumas histórias promissoras. Pena que, por ser lento, eu perca a maioria. Texto tem que ser servido quente; se deixar para escrever depois, as ideias diluem feito pudim que passou do ponto.

E essas ideias muitas vezes surgem na forma de imagens — e aqui eu chego no outro lado da enorme volta que dei nos parágrafos acima e justifico a frase usada a pretexto de introdução.

Falava que tinha saído para correr até o Araçá. Na curva que se faz logo após a casa de dona Marta, benzedeira famosa, e ato contínuo à passagem de um caminhão de bombeiros que farejava fumaça na localidade, tive a visão de um colosso repousando nas águas tranquilas da baía.

Desta vez, em lugar de usar o lápis, decidi recorrer a uma imagem de arquivo

Era o segundo transatlântico da temporada. Liguei para o Arão mais tarde e meu irmão, gerente do empreendimento ilha de Porto Belo, disse que era um navio da Costa Cruzeiros chamado Costa Favolosa. Mais ele não sabia, mas descobri que se trata de um cruzeiro classe Concordia de 114.500 toneladas que opera desde julho de 2011 e possui capacidade total de 3800 passageiros.

Não deixa de ser algo trivial, na verdade, considerando que desde a temporada 1997/1998 Porto Belo recebe navios desse tipo. Entre 2011/2012, por exemplo, chegou a receber 54 paradas. Hoje em dia, esse número é bem mais modesto, apenas dez escalas nesta temporada, como me informou Zene Drodowski, presidente da Fundação de Turismo do município (recentemente, a cidade recebeu o Seaview, navio da MSC de 323 metros de comprimento e 72 metros de altura, o maior transatlântico em atividade no país).

GABO, LLOSA E MACDOUALL

O que me chamou a atenção, fez lembrar do que disse ao Marcelo e motivou este post não foi tanto o navio, afinal, mas a tela que se pintou a partir da vista do cais do Araçá: impossível olhar aquela enormidade rodeada por embarcações de pesca sem imaginar um encavalamento do tempo. Modernidade e tradição dividindo o mesmo horizonte.

Isso me trouxe à memória uma imagem que guardei muito provavelmente da leitura do realismo mágico de Gabriel García Márquez: a descrição de uma baía caribenha de onde se via, a um só tempo, as caravelas de Colombo e um impávido destróier norte-americano.

Procurando em casa depois, não pude confirmar se tal visão foi mesmo imaginada pelo Gabo. Cheguei até a considerar que teria sido partilhada entre ele e Mário Vargas Llosa e tive o delírio de imaginar uma reconciliação poética dos dois Nobel latino-americanos, cuja amizade foi interrompida por um belo sopapo que o peruano desferiu no colombiano, por qual motivo ainda não se sabe (desconfia-se apenas). A depender de Márquez, não se saberá jamais. Bem, nada disso aconteceu e tive que dispensar o título heroico que pensei para este artigo: “Reconciliação de García Márquez e Vargas Llosa no Araçá”.

Se a imagem constava ou não da literatura de Márquez, Llosa ou mesmo Isabel Allende, o fato é que, ao olhar o belo transatlântico assomando atrás do Caixa D’Aço, imaginei-o a espreitar a frota de Robert MacDouall, em lugar da esquadra espanhola de Cortéz y Calderón, que efetivamente acossou o almirante inglês em águas catarinenses em fevereiro de 1777.

Como se sabe, o então comandante da esquadra do Vice-Reinado do Brasil conseguiu se esconder dos oponentes na enseada do Caixa D’Aço — que, aliás, passou a se chamar assim por conta dessa proeza — e partir em segurança para o Rio de Janeiro. Claro que, chegando lá, acabou destituído do cargo (afinal, havia fugido miseravelmente, deixando a Ilha de Santa Catarina ao sabor dos invasores).

Esse delírio literário durou o tempo de trocar o asfalto da subida do Caixa D’Aço pela poeira do acesso ao Estaleiro, pois era preciso estar atento ao caminho e receptivo ao que se passava em volta (como o casal de ciclistas, visivelmente turistas, que conversava com um local. Não fosse tão avesso a contatos com desconhecidos, diria que, sim, valia a pena pedalar aqueles quilômetros a mais de subida inglória e apreciar a melhor vista da Península, lá mesmo onde estava disposto a chegar: a Ponta da Enseada). E também evitar ser atropelado por uma, vejam só, solitária aracuã, no justo momento em que ela arriscava um rasante de um lado a outro da estrada.

Quase meia hora depois, já de volta ao asfalto da Segunda Praia, nenhum sinal do gigante. Sumira no ar como a visagem com que eu o havia adornado (na verdade, simplesmente foi-se embora, após acionar seus potentes motores). Na calmaria da enseada, apenas os pesqueiros de sempre. Um pouco mais próximo do costão, o barco “pirata” que leva turistas a partir do cais do Araçá. Uma indicação de que, afinal de contas, minha visão não havia sido tão original assim….